Relator das ações que discutem a constitucionalidade da prisão de condenados em segunda instância, o ministro Marco Aurélio, do STF (Supremo Tribunal Federal), votou por alterar a jurisprudência atual e só autorizar que réus sejam presos após o trânsito em julgado —o esgotamento dos recursos nas instâncias superiores.
Em um voto curto, de 11 páginas, Marco Aurélio afirmou que a Constituição é clara ao estabelecer, em seu artigo 5º, que um cidadão só pode ser considerado culpado após sentença condenatória transitada em julgado.
Se houver a necessidade de prender um condenado antes disso —porque ele representa risco à sociedade ou pode fugir da aplicação da lei, por exemplo—, os juízes podem decretar a prisão preventiva, conforme é previsto na lei.
O Supremo julga três ações que debatem a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, segundo o qual ninguém pode ser preso antes do trânsito em julgado (o fim dos recursos).
O julgamento foi suspenso por volta das 12h e será retomado a partir das 14h, para os votos dos dez ministros restantes.
“O princípio da não culpabilidade é garantia vinculada, pela Lei Maior, à preclusão, de modo que a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal não comporta questionamentos. O preceito consiste em reprodução de cláusula pétrea”, disse Marco Aurélio.
“A determinação constitucional não surge desprovida de fundamento. Coloca-se o trânsito em julgado como marco seguro para a severa limitação da liberdade, ante a possibilidade de reversão ou atenuação da condenação nas instâncias superiores.”
O relator também votou por soltar todas as pessoas que tenham sido presas por causa de condenação em segundo grau, exceto as que se enquadram nos critérios da prisão preventiva.
Um dos beneficiados pode ser o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), preso desde abril de 2018 em Curitiba depois de ter sido condenado em segunda instância na Lava Jato, acusado de corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex de Guarujá (SP).
Posteriormente, em abril deste ano, o STJ (Superior Tribunal de Justiça), que é visto como uma terceira instância, manteve a condenação do petista, fixando a pena em 8 anos, 10 meses e 20 dias de prisão.
Além de Lula, uma eventual mudança no entendimento do STF teria o potencial de beneficiar 4.895 réus que tiveram a prisão decretada após serem condenados em segundo grau, de acordo com dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
“O problema [das prisões antecipadas] adquire envergadura maior quando considerada a superlotação dos presídios. Constatou-se o exorbitante número de cidadãos recolhidos provisoriamente, a salientar a malversação do instituto da custódia cautelar e, consequentemente, a inobservância do princípio da não culpabilidade. Inverte-se a ordem natural para prender e, depois, investigar”, argumentou Marco Aurélio.
Para o ministro, o entendimento atual do STF, que autoriza a prisão antes de analisados os recursos nas instâncias superiores, faz com que o próprio tribunal se enfraqueça.
“Em vez de incisivo na tutela de princípio tão caro ao Estado democrático de Direito, o Supremo vem viabilizando a livre condução do processo persecutório por instâncias inferiores, despedindo-se de papel fundamental”, disse.
O Supremo está dividido: há ministros que defendem a prisão em segunda instância e ministros que, como Marco Aurélio, entendem que é preciso esperar o trânsito em julgado.
No meio, há uma proposta feita ainda em 2016 pelo ministro Dias Toffoli, hoje presidente da corte, de permitir a execução da pena após o julgamento do recurso no STJ. Por essa proposta, Lula não seria beneficiado no caso do tríplex, que o levou à cadeia, porque o STJ já manteve sua condenação.
Marco Aurélio se antecipou à discussão sobre essa tese intermediária e a refutou. “Uma vez realinhada a sistemática da prisão à literalidade do artigo 5º da Carta da República, surge inviável, no plano da lógica, acolher o requerimento concernente ao condicionamento da execução provisória da pena ao julgamento do recurso especial pelo Superior Tribunal de Justiça, como se esse tribunal fosse um Supremo Tribunal de Justiça, nivelado ao verdadeiro e único Supremo”, disse.
“Repito: o princípio constitucional da não culpabilidade pressupõe, para ter-se o início do cumprimento da sanção, o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.”